quinta-feira, 24 de março de 2011

O indispensável empenhamento

«A propósito da tragédia no Japão, o que mais impressiona é o comportamento dos japoneses. "Uma lição de dignidade numa desgraça imensa", escrevia em título de editorial o diário francês Le Monde. E de facto é isso: uma formidável dosagem de sangue frio, coragem, disciplina e civismo. Traços de carácter que se traduzem numa evidente coesão social. E que, nalguns casos, tanta falta fazem à sociedade portuguesa...
Vistos com os olhos de quem vive há mais de quatro decénios no estrangeiro, os portugueses têm de facto uma estranha concepção da vida em sociedade. Da maneira como concebem o seu estatuto pessoal. Como consideram a inserção que deve ser a sua no espaço público. De como avaliam o comportamento dos outros. Da apreciação que fazem dos que ocupam posições dirigentes, nomeadamente na vida política.
Parafraseando um autor espanhol de fins do século XIX, poder-se-ia dizer: o sonho de qualquer português é ser portador de um salvo-conduto onde figure uma cláusula límpida e imperativa: fica autorizado a fazer tudo o que lhe der na real gana! Porque o que impressiona de facto é que quase todo e qualquer português ache que, ele, tem todos os direitos. Mas, é claro, que não tem deveres absolutamente nenhuns. Nem em relação aos outros, no relacionamento social com desconhecidos. E muito menos em relação ao Estado democrático em que vive.
Daí que, nas conversas em lugares públicos, se vejam um sem número de personagens mais ou menos exibicionistas erigir-se em tribunos de trazer-por-casa e dizer todo o mal que pensam dos outros. Do Estado português. Da democracia portuguesa. Dos políticos portugueses. E, é claro, de toda esta "corja de gatunos" e demais "vigaristas" que por aí andam e que fazem que a sociedade portuguesa seja o que é. "O inferno são os outros", dizia Sartre. Quando os responsáveis pelo "estado da nação" são os portugueses, individual ou colectivamente. Que, na sua grande maioria, não têm consciência nenhuma do que é um horário e um calendário. Que, em actividade profissional, não hesitam em ocupar-se de assuntos puramente privados. Que se comprazem num consumismo frenético e na ostentação de sinais de distinção social, de preferência dispendiosos. Que recusam compreender que não se pode consumir mais do que se produz sem que o país caia na dependência do estrangeiro. E que, querer construir uma sociedade de progresso e justiça, supõe um empenhamento cívico e um esforço colectivo de cada instante...» 



Crónica de Nobre Correia, Professor na Université Libre de Bruxelles, publicada no Diário de Coimbra de 24 de Março

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